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mayana redin &

alessandro borsagli

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Prezada Mayana bom dia!

 

Meu nome é Alessandro Borsagli e moro na cidade de Belo Horizonte. Realizo há alguns anos pesquisas relacionadas à rede hidrográfica do município de Belo Horizonte a partir da perspectiva geográfica-histórica, com o intuito de compreender os processos que levaram ao desaparecimento de uma parte considerável de cursos d’água da paisagem urbana da capital do estado de Minas Gerais.

O processo ocorrido em Belo Horizonte não é novidade alguma, pois os cursos d’água eram (e em alguns casos ainda são) vistos há cerca de dois séculos como obstáculos para a expansão urbana, mas o que chama muito a atenção no caso daqui é o fato das águas fluviais terem sido um dos principais motivos para a escolha do sítio que veio a receber a capital, uma cidade planejada e construída entre os anos de 1894 e 1897.

Certamente, a desconsideração ocorrida posteriormente com os cursos d’água que passaram a integrar a cidade planejada tem a ver com uma herança do período da colonização portuguesa, que até então não se preocupava muito com a preservação dos cursos d’água das cidades fundadas por eles, e os enxergava apenas como depósitos de riquezas minerais e condutores das imundices indesejadas nas cidades.

Em pouco mais de sessenta anos, a rede hidrográfica que se encontra dentro do sítio original de Belo Horizonte sofreu profundas intervenções de modo a se adequar a um traçado que não permite que as águas sigam o seu caminho natural, e as consequências desse pensamento onde a natureza deve ser condicionada à racionalidade técnica podem ser sentidos até a atualidade, onde as águas tomam o seu espaço usurpado pela cidade.

Enfim, são áreas que não deveriam ser nunca ocupadas e transformadas pelo ser humano, que há séculos por motivos diversos insistem em tal erro. Abaixo inseri uma imagem da planta da “Cidade de Minas” denominação primitiva da cidade de Belo Horizonte, onde destaquei os cursos d’água que atravessam a cidade planejada. Ressalto que cerca de 90% da rede hidrográfica que se encontra representada nesta planta, elaborada no ano de 1895 se encontra coberta, e não por coincidência se tornaram receptores de parte dos esgotos domésticos dos bairros assentados nas vertentes das bacias hidrográficas e são os locais que apresentam maiores incidências de transbordamentos nos períodos chuvosos, junto com outras regiões do município que passaram por processos semelhantes, e uma segunda imagem do “poético” canal do córrego do Leitão, então visto como obstáculo para a cidade que trocava a poesia e a beleza das águas pela aridez betuminosa do asfalto.

Desde já me coloco à disposição para continuarmos o bate papo e obrigado,

 

Alessandro Borsagli

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Olá Alessandro, como vai?

Fiquei muito impressionada com a imagem do mapa de Belo Horizonte antiga, com os rios visíveis atravessando a cidade. Um minuto depois de ver o mapa e pensar nessa imagem — rios que atravessam cidades —, parei pra pensar que, teoricamente, não são os rios que atravessam as cidades, mas as cidades que atravessam os rios, que já estavam lá. E então fiquei me perguntando o motivo pelo qual, no imaginário comum do cidadão urbano, tem-se a impressão de rios atravessam cidades.

Estou pensando aqui que, para além do ponto de vista antropocêntrico que costuma datar o início das coisas pela ação do ser humano, (e que portanto pensa que o rio, mesmo sendo o motivo da fundação da cidade onde ela se encontra, é algo que atravessa o lugar ao invés de ser esse lugar), existe uma relação formal nesse mapa que ajuda a compreender a concepção de algo que atravessa e outro algo que é atravessado, que é a relação entre a linha e a mancha.

Costumamos dizer que cada cidade tem sua mancha. A mancha urbana de Belo Horizonte, a mancha urbana de São Paulo, a mancha urbana do Rio de Janeiro. A cidade se espalha. É claro que há cidades que são construídas a partir de um contorno, ou seja, um limite pré concebido. Mas mesmo nessas, a cidade vaza para fora com o passar dos tempos, que imagino ser o caso de Belo Horizonte e a Avenida do Contorno.

As linhas são elementos que cortam; portanto, fazer uma linha é dividir o espaço. O rio como uma linha, delimita o que está de um lado e de outro do rio. Ele, antes fluido, condutor, algo que desliza, passa a ser impedimento, barreira, fronteira. Eu fiquei pensando sobre a transformação da ideia de Rio que você menciona em seu email: de algo fluido e condutor para algo que interrompe, um obstáculo sólido, concreto. O rio se transformando na Pedra no meio do caminho, que Drummond falava.

Me passou pela cabeça que o interessante e o problemático disso, do ponto de vista formal para as cidades planejadas ou não que crescem ao redor dos rios, pudesse ter a ver com a impermeabilidade entre a mancha da cidade e as linhas dos rios, e pensei que talvez as cidades que odeiam seus rios tenham se transformado em um desenho duro, talvez como aqueles de cadernos de colorir que adultos usam para desestressar e que quanto mais colorem mais estressados ficam.

Imaginar o Rio como uma linha que delimita e impede o trânsito da mancha é esquecer toda a relação de permeabilidade com as margens que os rios historicamente, cosmogonicamente, tem com suas populações, e que certamente não temos, talvez pelo modo como em suas colonizações, eles foram tratados pelos colonizadores.

Me lembrei aqui de uma proposição da artista japonesa Yoko Ono, que costuma trabalhar com instruções e proposições coletivas, quando de uma exposição individual dela no Instituto Tomie Othake, em São Paulo. Este trabalho se chamava “Water Events”, onde ela convidava outros artistas para responderem a seguinte instrução com um objeto ou obra de sua autoria:

“Meus caros colegas artistas, eu quero pedir para vocês um receptáculo para a água a ser dada a pessoas específicas, seja para curar suas mentes (no caso dos senhores da guerra), seja para agradecer a sua coragem de protestar (no caso de ativistas de base). Ele pode ser dado também a uma pessoa específica, ou para uma terra em necessidade desesperada por água (amor). Você e eu iremos fornecer a água. Cada trabalho será exibido no museu com a dedicatória associada a ele.Vamos nos divertir fazendo isso juntos.Yoko.”

A instrução de Yoko era relativamente aberta, mas imediatamente eu pensei na relação entre a água e a borda que a contém, que a carrega. O objeto que eu ofereci em resposta à proposição da Yoko foi um tijolo de esponja cinza, que deveria ser alimentado diariamente com água, ou seja, estar sempre cheio, com a água carregada em suas células. A ideia era pensar um objeto que pudesse ser conteiner e conteúdo ao mesmo tempo, que a linha se confundisse com a mancha, e que essa permeabilidade entre o fora e o dentro não fosse clara nem visível. A esponja carrega a água sem precisar de um limite exterior.

Agora estou aqui imaginando como a cidade seria se ela tivesse uma relação esponjosa com seu entorno…

Por enquanto fico por aqui, e seguimos a conversa.

Muito obrigada pelas imagens e pela sua descrição!
Deixo abaixo outra imagem de Yoko Ono, que tem a ver com as águas.

Abraços!

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Cosmic Records, 2019. Mayana Redin.

Objetos de argila modelados sobre páginas de um livro de astronomia.

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