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louise ganz &

edézio teixeira

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Olá Edézio,

    

Estou contente de iniciar uma correspondência com você. Então vou me apresentar: sou artista plástica, arquiteta, e às vezes geógrafa, não de formação, mas de costume, pois adoro mapas, adoro percorrer durante horas o google earth, tenho ótima orientação espacial desde criança, coisa que desenvolvi durante as viagens com meus pais, quando me sentia uma expedicionária guia, observando a posição do sol, decidindo o rumo a tomar nas estradas não sinalizadas, registrando mentalmente os lugares por onde passávamos, traçando um mapa de trás pra frente para quando precisássemos retornar. Não me perco facilmente e guardo as coisas, sobretudo quando tenho elementos geográficos como guia, como a topografia dos morros, dos fundos de vale, do caminho das águas, os declives e aclives etc. Mas perder-se ou não, não é o que importa. Quero dizer que, de algum modo, acho que essa sensibilidade ao percorrer esses espaços físicos ou pelo google, me faz estabelecer conexões entre eles, ver como um interfere no outro, como suas relações são sistêmicas, e como isso acontece não só entre coisas da mesma ordem, como por exemplo os elementos da geografia física, mas entre coisas que parecem distintas, mas não o são: meio ambiente e políticas públicas, desmatamento e aumento de filas no SUS, urbano e florestas, uso das águas e modos de vida, propriedades e o não acesso à terra, rios aéreos x queimadas criminosas, terra plana e derrubada de florestas....

Vivo na região metropolitana de Belo Horizonte, de onde penso e vejo as mineradoras que escavam o território seguindo os eixos leste-oeste e norte-sul, do complexo do Espinhaço, da serra do Curral, da serra da Moeda, da serra da Mantiqueira, formando claramente quadrantes de exploração que vão expulsando habitantes – humanos, bichos, plantas e águas – do território, e sua relação com o lençol freático das cidades, vilarejos e entornos. Conheço essa região ao sul de Belo Horizonte porque há mais de 30 anos faço caminhadas no que eram passivos ambientais, mas que hoje são gigantescas áreas interligadas, escavadas, com barragens, taludadas, avermelhadas e alaranjadas, luzes fortíssimas para marcar presença, barulho das máquinas, poeira, e o mais recente, os ensaios com sirenes a cada mês. Hoje estou a 8 km do Córrego do Feijão.

Agora estamos do outro lado da serra, na bacia hidrográfica do Cercadinho, que inclui os bairros Buritis, Estrela D'alva, Estoril, Havaí, Palmeiras, Marajó e parte dos bairros Belvedere e Olhos D’água. No Buritis é visível ainda o desenho dos talvegues, onde brotam diversas nascentes desse manancial. Mas nas bordas dessas matas e águas logo se encontram situações absurdas de terraplanagem! Uma depois da outra, uma ao lado da outra, uma sequencia de “essa é minha propriedade, faço o que eu quero” – tanto no sentido do corte do terreno para torná-lo plano, quanto na decisão tosca de jogar a terra onde se quer, de soterrar nascentes e matas como se fossem coisas inúteis, sem valor econômico, coisas que atrapalham mesmo o desenvolvimento – "tudo isso só atrapalha, esse matagal, essas águas brotando...”.

Do parcelamento da antiga fazenda de Aggeo Pio Sobrinho restam esses talvegues encurralados pela ocupação, sempre violenta e acelerada, numa investida brutal de terraplanagens, feitas para instalar empresas, torres de edifícios, conjuntos de habitação, galpões, áreas para campos esportivos etc. Aqui parecem mais violentas. Essa violência do modo de ocupar a propriedade diz tanto de nossa história colonial: das terras doadas pela coroa portuguesa, das extensas fazendas latifundiárias de um dono só que nunca deveu satisfação a ninguém, à figura do antigo capataz das fazendas coloniais, que reproduzia a lógica do poder de seu “senhor” sobre os lavradores arrendatários, ao dono de um lote, que faz o “que bem entende, já que é o dono”. Todos numa investida para tornar a terra plana.

Envio aqui para você algumas pinturas que fiz a partir desses percursos aéreos feitos nessa região do Buritis descritas anteriormente. No século XX eu era uma pintora, deixei de pintar e há poucos anos retomei essa artesania. Trabalho na UEMG, na Escola Guignard, onde oriento projetos em pintura de alunas/os, discuto pintura e pratico pintura. Como é um campo muito vasto, nos leva para investidas que podem ser da matéria da tinta, do pincel e da tela, mas também de muitos outros materiais e tempos, de distintos procedimentos, de cortes, aterros, arranhões, raspagens, cercamentos, transbordamentos para além do plano, idas para o espaço, além de tantos outros elementos que dizem da representação, da visualidade, ou da não visualidade.

Agradeço o envio de sua apresentação, onde falava dos desastres e barragens. Inevitavelmente lembrei-me do desabamento de um prédio no Buritis, em 2012, e do filito, da saturação do subsolo pela água, dos cortes de terra, das construtoras, e do “vamo que vamo, cada um faz o que quer em seu terreno, que a terra aguenta..." Nesse percurso feito pelo google, estive intrigada com esses cortes, aterros, desterros, feitos toscamente, que evidenciam uma ansia / ganância por tornar a terra plana. Intitulei essa série de pinturas de "terra plana". O que faz pessoas há tantos séculos quererem tornar suas terras planas nesse país? 

Abraços, Louise

Cara Louise Ganz: Infelizmente hoje terei de ser breve porque estou muito lento nas coisas com que estou comprometido, mas estou muito bem impressionado. Tenho certeza quase absoluta de que você seria grande geóloga, e certamente muito melhor do que eu para convencer o povo da necessidade de um saber geológico básico.
 
Tenho feito algumas coisas em BH que levam um certo pioneirismo, mas gostaria de chamar sua atenção para absurdos não menores que estudei ou li na Europa. No Brasil, fui a uma reunião da Renova para ver como andavam as coisas em Brumadinho. Numa apresentação pretensamente técnica alguém falou que o desastre de Brumadinho era o maior do mundo e da história. Um absurdo mesmo, concordo, mas há alguns anos ocorreu desastre numa barragem de rejeito de não ferrosos na Itália, província de Trento, que matara mais de centena. Ah! Itália? Algumas dezenas de anos antes a ruptura de um talude a montante da barragem de Vajont (285 m de altura, concreto dupla curvatura, com o reservatório quase cheio), transposta por uma espessura de água de mais de 100 m, sem romper a barragem; a onda desceu atingiu a coitada da Longarone, onde matou 3.600 pessoas! Inglaterra? No país de Gales ruptura de barragem de rejeito de mina de carvão rompeu, avançou sobre escola de crianças, matou 55 delas e mais cento e tantos adultos. França? Barragem de hidrelétrica rompeu e matou 535 ou 355 pessoas. Concluo que cuidemos de nós mesmos, para não falarmos de Rússias, Polônias e outros.
 
Recentemente acompanhei notícias de TV poderosa em programa de Sampa e Rio que falaram infinitos absurdos e confesso que não exageraram no caso de Brumadinho, entretanto nem uma palavra do maior desastre recente do Brasil: (960 mortes na serra fluminense em Teresópolis e Nova Friburgo, nos esquecemos de alguns desastres nossos próximos há cerca de 20 anos em BH, mas não dá para esquecermos dos 5.500 mortos no Rio e Serra das Araras em 1967, se não erro. Muito interessantes seus desenhos. Não sei se lhe enviei o Mapa Geológico de BH (que lhe envio imediatamente se não foi, e podemos falar um pouco das 3 explicações somativas). Grande abraço.

Olá Edézio,

o mapa geológico não veio.
quero saber das coisas que você tem feito em BH que levam um certo pioneirismo. Muito curiosa. Abraço

Cara Louise: Tentarei enviar-lhe o Mapa Geológico de BH. Se você o ler com as vistas postas na topografia de BH, fará associações importantíssimas do relevo com os comportamentos mecânicos das respectivas formações geológicas. O Brasil, mas não só, não sabe quase nada de geologia e geologia é 90% do conhecimento da terra.
 
Um dia podemos marcar uma visita sua porque aí posso não só exibir-lhe coisas que não terá visto, mas, além disso, compreendê-las. Envio-lhe hoje 3 coisas: um mapa geológico de pequena escala, esquemático, uma de escala de trabalho, que você deve ler observando o relevo, e um aterro feito com base em semelhanças com o baita engenheiro Saturnino de Brito, a meu ver dos melhores que passaram por BH. Se ocomputador de casa me permitir, ficarei muito alegre. Abraço. (Desculpe-me: Não achei o terceiro)
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Estimado Edézio,

  

Desculpe a demora em responder. Nesse meio tempo, fiz uma expedição no alto do bairro Buritis, dias após o incêndio em uma das áreas de preservação, que é justamente o lugar que eu havia percorrido pelo google. Dei a volta nas ruas que circundam os quatro talvegues que descem em direção ao bairro e fiz várias fotografias, selecionando algumas para te enviar. Mas antes de falar disso, queria te dizer que li o material que você me enviou sobre o sistema de drenagem do Vale dos Cristais, e achei incrível esse pensamento que parte da casa para depois seguir para o que é comum a todos. Parabéns, fiquei feliz de ver esse conjunto de dispositivos que vai recolhendo e amortecendo as águas da chuva até chegarem nos córregos: recolhimento da água de chuva dos telhados, com infiltração em cisternas, em cada moradia; a sequência de caixas de amortecimento das águas e o aterro-dique. Com esse projeto você propõe algo que vai na direção oposta da atitude individualista do proprietário que diz “eu faço o que quero, já que é meu” sem nenhum laço com o coletivo. Nesse caso, uma regra de condomínio que diz da obrigatoriedade de recolher a água dos telhados já dá inicio a uma mudança de costumes. E pensando no Saturnino de Brito, como seria bom se desde o início da fundação dessa cidade tivéssemos tido seu projeto efetivado, onde o sistema de drenagem vinha separado do sistema de esgoto. Teria sido outra cidade.

Como já disse anteriormente, fui atrás das áreas que eu tinha visto pelo google, que circundam os quatro talvegues – esses que são área de preservação e área do parque Aggeo Pio Sobrinho. Selecionei aqui os taludes de uma obra em andamento, um empreendimento imobiliário de vários prédios, outros terrenos bem grandes, com placas, marcando o território para futuros empreendimentos, e lotes de um tempo geológico. Eu sabia que iria encontrar situações bizarras, tristes, como de fato ocorreu. Nessa região vai-se acompanhando o tosco processo de urbanização em tempo real: restos de topografia original, de árvores e campos massacrados por edifícios com implantações grosseiras, com terraplanagens constrangedoras. Fragmentos de áreas in natura – um topo de morro esquecido com um grupo de árvores, matas cercadas com olhos d'água – rodeadas por terrenos desmatados, reservados para futuros empreendimentos, esperando valorização, com placas corroídas, terrenos erodindo, ares de abandono... bolsões, reservatórios de dinheiro. Vejo isso e penso se teria ainda um jeito.

Nas regiões mais centrais da cidade já ocorreu um apagamento da história topográfica e dos viventes, aquilo que é solo, vegetação e água fica enterrado. É tão estranho que nem lembramos mais da existência dessas coisas, a não ser na presença ainda de alguns terrenos baldios, ou então em coisas planejadas para isso, que vem depois, como parques, árvores em linha nas ruas etc. Mas aqui, nesse bairro, de urbanização não tão antiga, ainda vemos esses tempos sobrepostos, ainda vemos uma história se processando; talvez ainda haja chance de parar esse processo de destruição que vê matas e águas como lixo, resto, terra nulis, terra disponível para construir.

Penso no tempo geológico, que é também explicitado pelos cortes e sobras. Aquilo que antes era o morro, a mata, a água, é hoje a sobra. Ainda teria jeito de reverter? Pensar e fazer a cidade pelo morro, pela mata e pela água, e junto, de modo orgânico, vir o edifício, o plantio, as ruas, a drenagem, as pistas de bicicleta, os percursos, os parques, etc, etc? Voltando ao Saturnino, aos dispositivos coletores que você propõe, à mudança do privado para o coletivo, quem sabe ainda dá jeito, né?

Penso agora de fazer pinturas partindo dessa última ideia aqui, desse modo mais orgânico, o que acha? Vamos fazer?

Abraços

Louise

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Ah Edézio,

    

nesse tempo fiz uma aula com a geóloga professora Soraya Almeida, da UFRRJ, sobre Romantismo e Ciência: José de Alencar e Geologia. segue o link do vídeo que ela nos enviou:

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